Gestação de Substituição – o interesse estrangeiro

Refiro-me à Lei n.º 17/2016, de 20 de junho (que tornou possível o acesso às técnicas de PMA a todas as mulheres independentemente do seu estado civil, da sua orientação sexual e, acima de tudo, independentemente de um diagnóstico de infertilidade) e à Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto (que tornou lícita a celebração, em certos casos, de contratos de gestação de substituição).

Em termos pessoais, gostaria que tivesse sido dado um ainda maior realce ao 30º aniversário do primeiro "bébé-proveta" português Carlos Saleiro, nascido em fevereiro de 1986, à sua Mãe Alda e à equipa que permitiu esse quase milagre, chefiada por um homem que respeito e admiro profundamente, o Prof. António Pereira Coelho.

Mas como aniversário não foi mau de todo.

E acrescento que o Carlos Saleiro e essa terá sido seguramente a sua melhor prenda (e a de sua mulher), foi nesse ano pai de uma linda criança que nasceu sem que tivesse sido necessário recorrer a qualquer técnica de PMA.

2016 foi, portanto, um bom ano para a PMA.

Todavia e isso é particularmente válido para a Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto, cujos efeitos só puderam começar a concretizar-se com a publicação do Decreto Regulamentar n.º 6/2017, de 31 de julho (ou seja, só a partir de 1 de agosto de 2017, os novos direitos feitos nascer por aquela Lei se tornaram realmente reais e passíveis de ser exercidos), só em 2017 foi possível começar a observar as mudanças resultantes dessas novas regras de funcionamento da PMA.

Antes de prosseguir, seja-me permitido um desabafo pessoal.

É-me muito penoso (e até doloroso de suportar) ouvir as ferozes críticas à legalização (em termos muito limitados) da gestação de substituição quando, em boa verdade, as alterações mais radicais quer ao paradigma da PMA quer à estrutura tradicional da Família foram introduzidas pela Lei n.º 17/2016, que passou incólume, sem vetos presidenciais e sem sombra de oposição por parte dos sectores mais conservadores e tradicionalistas da sociedade portuguesa.

Efetivamente, com a Lei n.º 17/2016 e não com a Lei n.º 25/2016 (a tal da gestação de substituição), as técnicas de PMA deixaram de ser o tratamento de uma doença (infertilidade sobretudo mas também um meio para impedir a propagação de doenças, a começar pelo HIV/SIDA mas não só) para passar a ser também um procedimento acessível a mulheres não doentes (lésbicas e mulheres sem parceiro ou parceira - a expressão «mulheres sós» é redutora e insultuosa porque, como ensina a sabedoria popular, "vale mais só que mal acompanhado" e uma pessoa, homem ou mulher, pode estar muito bem acompanhada apenas consigo própria).

Por outro lado, a Lei n.º 17/2016, que até introduziu modificações nas regras que definem a situação jurídica das pessoas que vivem em união de facto, veio legitimar e tornar igual às demais, uma estruturação da unidade familiar (as famílias monoparentais) que até aqui era social e legalmente concebida como algo apenas resultante de infortúnio e de perda - em suma, como algo indesejável e pouco positivo que existia e cuja inevitabilidade, embora a contragosto, tinha de ser aceite e com a qual tínhamos todos de nos conformar.

Devo dizer que concordo com essa alteração que nos tornou a todos mais senhores do nosso próprio destino. E em Portugal as famílias monoparentais existem há décadas (estou a pensar nos anos 50 e 60 do século passado), para não dizer há séculos (estou a pensar nos Descobrimentos e na dita Expansão Ultramarina), sem que as crianças e posteriores adultos nados e criados no seu seio manifestem perturbações ou desequilíbrios emocionais e/ou sociais dignos de nota.

Mas custa-me tanta hipocrisia e tanta animosidade (será até que é ódio ?) face a seres humanos - os afetados pelas situações em que é possível e lícito recorrer à gestação de substituição - cujo sofrimento nos devia merecer maior solidariedade, compaixão e amor fraterno.

Ou será que a expressão «somos todos filhos de Deus» é só para usar como adereço ou enfeite para "bem parecer"?

A mim, que sou ateu, não me escapa o sentido essencial de fraternidade contido nessa bela expressão.

Mas, voltando aos efeitos daquelas duas Leis aprovadas em 2016, é inegável que as mesmas trouxeram problemas novos à PMA e, porque os recursos sociais são finitos, àqueles que, padecendo de infertilidade, já não tinham antes uma vida muito fácil.

E não estou a pensar apenas nas terríveis listas de espera (que o são porque o Tempo é, nestes casos, uma realidade particularmente cruel). Gostaria, contudo, que perante esta nova situação nos assumíssemos todos como pessoas que procuram encontrar soluções (problem solvers, para usar uma expressão em inglês da qual gosto particularmente) e não como criadores de mais dificuldades.

A vida já é suficientemente dura e difícil, especialmente para quem tem de aceder às técnicas de PMA. Sinceramente, não precisamos de troublemakers.

Gastemos antes as nossas energias a encontrar respostas positivas para os problemas que inegavelmente existem - tendo sempre presente que todos os problemas têm solução e normalmente sempre mais do que uma.

Desejo profundamente que em 2018 consigamos encontrar muitas soluções duradouras e sustentáveis para os problemas da PMA.



Eurico Reis - Juiz Desembargador
Presidente do CNPMA